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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Sobre o contexto e Pina



Qual o verdadeiro lugar onde habitam os artistas? Palco ou platéia? Somos parte de qual sociedade? Comemos balas, temos inquietações com o breve silêncio?Por onde andam os nexos expostos ontem na obra - completa e imaginária- de Alain Plantel? A que ponto chegou a Bélgica que nos comprova o papel artístico-cultural no Brasil?! Céus, quanta pergunta viva dentro de um corpo, sentado e calado - gritando com lágrimas: quero invadir o mundo, quero dizer o que todos deletam. A vida é mais bonita se for mostrada com suas intoxicações, seus devaneios e “esculturalismos”. Ainda posso sentir aquele leve broxar, botões de rosa a se levantar de poltronas como a minha: assim começa uma carta à Pina Bausch.

Cabelos estranhos, pernas definidas. O palco sem cenário algum: dois microfones e um punhado de cobertores avermelhados. "Onde eles estão? Começou? E a música"? Mentes inquietas de pensamento a pulmão. Tosse, tosse, cospe. 

Aos poucos levantam e invadem o cenário: o vazio chega ao fim. Estamos observando, como fotografia em movimento. Dentro de mim um leve encantamento: posso entrar no palco também?

Despiram-se dos estereótipos. Calças, bolsas, sapatos. Roupas dobradas e ordenadas como sol e mar. Cuecas, sutiãs e calçinhas. Rosa, azul, roxo. Nenhum tom era mais bonito que a própria pele, exposta, disposta. "É isso? Assim? Não tem roupa"? 

Grrrruuuaaaáu. Som e imagem. Barulho de bicho feito por gente. Agora todos estão iguais. Tapados pelo mesmo tecido, sem lamentações, sem contexto. Aos poucos se encontravam pelo palco, se cheiravam, se olhavam. Que forte! Plantel me manipulou. Levou meu senso comum à flor da pele: o que Pina tem haver com isso? Desdobrou toda a significância, humilhou toda a insônia cultural. Alan arrancou meu coração e em troca presenciou as sensações.

Os microfones estáticos, os corpos se reconhecendo simultaneamente. Como é lindo! Vi uma dezena de animais evoluindo. Pele, osso, recheio. Aos poucos se identificando. Como os grunhidos e a respiração. Eram movimentos tão distorcidos - de fato. Corpos definidos, colunas elásticas, pernas e pés abusivos na perfeição. Um estudo real sobre a capacidade humana de mover-se. Pina tem tudo haver com isso.

Seqüencias alcançam o ápice de interesse: mexiam apenas mãos e braços. Sem brutalidade, mas com força. Gritavam dentro do próprio peito, remexendo as minhas lembranças: Pina. Puro e simplesmente para Pina. Braços, mãos, mãos e traços. 

Como um novo parágrafo, novos encontros, novos movimentos. Aos poucos Plantel escrevia no palco frases tão simétricas. Dizia-nos versos. A humanidade se reconhecendo, como bicho reconhecendo o outro. Tumti Tumti. Tumti. A música invade a platéia. Os corpos em exposição enfeitiçam com a ironia: dançavam exageradamente com a alegria sem sorriso. A pergunta que voltava na mente: posso invadir essa cena? Dançar como eles que ironizavam o pop, o hip hop? Mexer os braços e as pernas sem intenção aparente? Tumti. O público vai a delírio, sorri, ri. E eu? Choro.




"Out of the context - For Pina Bausch", divulgação.


 Um amontoado se forma no fundo do palco. Um oriental distorcia o corpo à frente. Criam-se assobios na platéia. Cria-se minha maior revolução: fiquem quietos! Quero observar com silêncio como ele faz para respirar fundo e dançar com a sua verdade. Riam demais. Riam tanto que aquele corpo pertencia a todos nós. E invadia nossas poltronas, dançava no rosto e no corpo de quem era por ele sorteado. Sim, dançava mesmo, de fato. Completando um terço de seu desabafo Alan Plantel recebeu palmas. A ironia atinge, mas será que convence?

O microfone permanece. Um deles dubla uma música - ópera, creio eu. Canta com o corpo, como se fosse seu maior sonhar. E à medida que a música toca nos indaga: canto ou dublo? Dubla. E a resposta só vem com o abandono brusco do microfone. Ainda existia uma voz em bom volume. O corpo, então, se move. BUM. A música termina e a sua garganta ainda grita. Risos inquietos na platéia.

"Fora de contexto". Fora de mim quando um dos corpos se aproxima e pede: levantem a mão direita. Que visual! Que lindo todas aquelas mãos para cima: o que ele quer? "Quem de vocês quer dançar comigo"? Ao fundo uma das músicas mais lindas que escutei até hoje. E toda a beleza das mãos some, deixando apenas dez ou mais. A minha estava viva, cada vez mais visível. Tudo o que queria era estar ali, invadir aquele palco, tirar meu vestido, me despedir dos estereótipos e enfim dançar com aquele homem. Sentir de perto aqueles corpos absurdos em arte, e dançar e dançar até a linda música terminar. Entender, afinal, o que foi Pina Bausch para o mundo, e o que diz Plantel após a morte dela. Nada naquele breve momento estava fora do contexto. Nada além de minhas lágrimas delirantes no entendimento. Senhores, a solidão é tão linda!

Ao fundo os corpos iam se esculturando em suas roupas. Trilhando seus caminhos, voltando para a platéia como de origem. E ele, aquele homem sozinho, ainda a espera de alguém para dançar. Meu braço era o único vivo e em pé. 



Bailarinos de Alain Plantel

Os aplausos antecederam o fim da obra. Publico errante! Deixem, por favor, o vazio do palco ser reconstruído. Esperem estes homens e mulheres serem homens e mulheres. Mas assim não se fez. Alguns saíram - ofendidos, creio eu. Outros ali, em pé, vivos, assobiavam e aplaudiam. Meu rosto ainda estava tomado pelas lágrimas. Ali, naquele instante vi Pina. A enxerguei dentro do peito de todos os corpos dançantes, de todos os aplausos imensos. Senhores, nada, nada além de sentindo invadiu o meu peito e arrancou meu lamento: Pina ainda habita o mundo.